E tudo acaba neste instante para que tudo comece Novamente.
Os anos vão passando e cada vez menos interessante se torna o passar dos anos. Não que a vida tenha nos deixado de despertar interesse, pelo contrário, ela nos brinda com boas safras. O problema é que cada vez mais que me torno racional, mais os homens se tornam infantis. Ele e suas malditas leis e costumes e tradições e loucuras. Passei boa parte do meu tempo hoje tentando entender sujeitos como Weber, Marx. Tenho a leve impressão de que tenham despertado nas pessoas percepções antes não vistas, um barato coletivo da ordem da amplitude mental. Se estes grandes da sociologia histórica interpretaram o mundo, muitos mundanos tentaram interpretá-los.
Vejamos o caso dos esportes. Ele nasceu para a idade moderna. Os Estados-Nações secularizaram uma imensa quantidade de diferenças, apostando na previsibilidade das ações do homem. A alemanha, por exemplo, antes de sua unificação, eram dezenas de estados independentes com culturas ora similares, ora diferentes, ora opostas. Entretanto, sobre o manto da camisa alemã em uma Copa do Mundo, todos se tornam homens da mesma pátria. E em cada pátria, existem regiões, províncias, condados e em cada um deles, vilas, cidades, ranchos, sítios, fazendas que por sua vez têm uma, duas ou três equipes diferentes. Por isso, a cada temporada vemos as bandeiras postas em confronto e os rivais em combate se degladiam nas arenas oficiais, particulares e públicas.
O esporte se tornou uma grande peça de nossa existência pois foi movido pelo impulso secreto que existe dentro de cada um de nós, um impulso de vitória, mas não apenas disso, um propósito bi-valente que, ao mesmo tempo em que busca a vitória, se saceia com a disputa. Além é claro, de proporcionar outras sensações sádicas e pouco altruístas como a alegria pela derrota alheia e o "se alimentar com falsas glórias" - trapaças e outras artimanhas que tiram a sinceridade da alegria de vencer.
Numa eleição municipal também é assim e ainda vai além. A política supera até mesmo as questões irracionais do corações e mesmo, racionais da ética. Ela mexe com tudo e faz saladamista com o passado e as ordens tradicionais, mesmo que sempre tendem a conservá-las. Se antes alguém odiava alguém, hoje componhem a mesma chapa. Têm aqueles que pulam de partido a cada pleito, esperam conseguir melhores votações ou pelo menos "pode dar mais sorte". E ainda temos as questões familiares, é pai que passa poder ao filho, é primo que assassina o tio, irmão brigando com irmão, mulheres fazendo fofocas e distribuindo verdades e inverdades, vizinhos se pegando e por ai vai.
Quando a família do meu pai deixou suas terras em Espera Feliz, lugarejo próximo ao pico da Bandeira, na fronteira de Minas com o Espírito Santo, muitas circunstâncias levaram Nico, meu avô, a querer que tudo se resolvesse no fim da estrada. Eles eram quinze migrantes internos, íam para uma cidade bem maior que a de origem, mas ainda assim, não sendo a capital do estado. Meu Avô e sua esposa, Maria, lideravam a cansativa excursão com seus filhos, cunhados, netos e agregados. Antes de pegar a via empueirada em caminhões cheios de gentes e esperanças, muita vida tinha se passado por ali naqueles olhos.
Nico era filho de um cristão novo, neto de judeus portugueses e conhecido como Jacó, o prolífero. Vovô era o 20º filho de uma imensa dinastia de cerca de 63 seres humanos gerados, fora os abortados e natimortos, 8 esposas e inúmeras amantes e namoradas, fora as putas. Hoje, sei que tenho parentes em vários cantos do Brasil, do Uruguai e do mundo, mas seria talvez impossível reconhecermos uns aos outros, esse meu bisavô não foi lá muito atenção com seus filhos, vivia mudando de cidade em cidade, sempre a procura de ouro e bucetas. Parecia haver uma bola em chamas dentro do seu espírito que não o deixava quieto e não conseguia fazê-lo ficar sossegado, parado muito tempo no mesmo modo de vida. Foi um verdadeiro dandi "se virão", por assim dizer.
Apesar disso, entre todos aqueles irmãos e irmãs legítimos e ilegítimos, criados e esquecidos, vô Nico tinha lá seu jeito parecido com o pai. Por isso sempre fora um dos favoritos. Contam, é claro, que também havia sido beneficiado pelo fato de Jacó ter ficado realmente apaixonado por sua mãe, Esmeralda, portuguesinha de 15 que ainda lhe daria outros cinco filhos. Meu avô era o primeiro filho do quinto casamento e acompanharia seu velho por muitos anos. Não foi a toa que ficou conhecido como Nico do Jacó, privilégio concedido publicamente apenas a ele, a nenhum outro, das dezenas de nomes fora permitido esse tipo de intimidade com o cristão novo.
É claro que seu comportamento criava discórdia onde chegava. Sua liberdade locomotora deixava todos apreensivos, ninguém sabia como segurar seus impulsos. Não ía às missas, não gostava de cachaça, detestava jogo e ficava muito tempo em duas atividades principais: extraindo malacaxeta das minas e trepando com qualquer uma que lhe permitisse esse tipo de intimidade. Com o tempo, a vida de mascate lhe ensinara alguns segredinhos e por isso, sempre tinha à postos, banha e cheiros para se lavar. Ao sair da escuridão das cavernas, chegava em casa e tomava um longo banho frio. Num verão, quando acabara de chegar em casa e se preparava para assear , assustou-se com o choro de uma criança. Parecia que vinha de algum lugar próximo a porta da rua. Foi até lá para investigar e por algum buraco na fresta pode perceber um moleque de uns três anos parado com os olhos vermelhos e uma expressão de descontrole. De cinco em cinco segundos, o garoto soltava um grito estridente, provocando uma profunda algazarra na cabeça de quem ouvia.
- Ei menino, que porra é essa gritando na frente da minha casa. Deve ter sido o capeta que te mandou aqui para pertubar meu banho.
E o pobre menino, vendo a face cruel daquelas palavras continuava insistentemente a chorar e a chorar. Jacó percebeu um bilhete em suas mãos. Deixe eu ver isso aqui, seu porra, disse nervoso e quase quebrando os dedos da criança. "Seu judeu filho de uma puta. Este aí é o seu filho, criança que matou minha filha ao nascer e que esconderam de mim. Entretanto, a verdade sempre aparece. E você agora ou recebe este maldito em sua casa ou o atira no rio que passa por trás dela. Não quero ver seu sangue por perto, mando lhe cortar os colhões, seu velho safado. Que o demônio te abrace, Cel. Antônio Bento".
Em uma expressão sincera, deixou escapar um leve e quase imperceptível "puta que pariu". Era uma carta de um dos mais poderosos senhorios de terras daquela região. Realmente tinha se engraçado com a filha, mas não imaginava que a coitada havia morrido ao conceber um filho seu. Como vou fazer, pensou, daqui a pouco Esmeralda vai querer saber por que esse maldito esta aqui chorando e eu não vou ter o que falar. Lógico que ela perceberá o ocorrido. Sua esposa estava na feira da vila tentando arrecadar alguns recursos vendendo produtos plantados em sua propriedade. Como tinham muitas necessidades materiais, eram várias bocas, tinha pelo menos três mulheres, uma oficial e outras duas de consorte. Ali, mulheres também trabalhavam, íam aos mercados oferecer produtos e comprar mantimentos. Jacó não via qualquer sentido em recriminá-las por querer ir e vir, pelo contrário, para ele era ótimo que elas exercessem funções além da casa como comprar comida ou fazer dinheiro. Talvez tenha sido por isso que tenha tido tantas. Outra coisa que não fazia aos parentes era obrigá-los ir à missa aos domingos. "Deus existe para qualquer um, ninguém precisa me dizer onde Ele estará, muito menos marcar dia e horário", dizia quando questionado de sua ausência ou da ausência de mulheres e filhos nas manhãs dominicais.